sábado, 29 de setembro de 2007

ainda tens algo a fazer aqui

para k., os alunos da disciplina de estudos urbanos 04, turno noite, do centro universitário Izabela Hendrix, grazielle, bruno paiva e bruno rimulo do curso de turismo do centro universitário Newton Paiva

[texto (que deveria ter sido) apresentado no seminário "pensando o Modernismo', na mesa 'o lugar da cidade depois dos Modernos]

Hoje, apoiado no planejamento estratégico pós moderno formado pelo urbanismo, arquitetura, turismo, serviço social, marketing, economia, sociologia e diversos outros campos do saber responsáveis pela preservação e construção de monumentos como o Pelourinho, entrou desde os anos 80 no circuito de produção de capital cultural a cidade histórica, aquela descrita por Choay em seu livro Alegoria do Patrimônio como uma perda de seu caráter historial, vivido então, pois “tornando-se histórica, perde sua historicidade”[1]. Dando um passo à frente aos planos modernistas e proto-modernistas, onde a cidade antiga era um artefato cultural digno de um olhar museográfico e arqueológico, sendo objetos localizados no ponto final de grandes eixos perspectívicos no redesenho da cidade antiga; hoje, a cidade tem um uso específico: adequar-se a uma lógica produtiva onde a sua imagem e a vida por detrás dessa imagem são produtos a serem vendidos em planos de requalificação urbana, empreendimentos imobiliários presentes em jornais dominicais, guias turísticos, entre outros.
Tal como os modernos, a forma da cidade a ser preservada ainda é uma cuja imagem se caracteriza pela limpeza e imutabilidade, onde rastros, vestígios, marcas humanas devem ser retiradas a fim de apresentar o patrimônio como velha novidade e a vida, como um “estilo de vida”. Uma noção de cultura continua a se confirmar, apontando para o passado como verdade absoluta e irrefutável pela repetição infindável de modelos e práticas preservacionistas centradas no objeto, auxiliadas por termos e marcas publicitárias como ‘responsabilidade social’, ‘preocupação ambiental’ e ‘patrimônio cultural’.
Porém, as cidades não são monumentos imutáveis e caracterizados pela harmonia como expostos em planos totais como o que Le Corbusier projetava em seus desenhos de uma cidade moderna. Sabe-se desde a abordagem crítica marxista dos anos 70 que a cidade é produto de uma lógica cultural maior, no caso urbana, que contém aspectos econômicos, sociais, arquitetônicos e políticos dinâmicos e por isso mesmo, conflitivos. Assim, como coloca-nos HOBSBAWN em seu livro Sobre a História, no texto ‘o sentido do passado’, não é mais possível restaurar ou conservar um edifício sem considerá-lo “uma máscara para inovação pois já não expressa a repetição daquilo que ocorreu antes”. Trazer de volta uma edificação ou uma cidade através de mecanismos externos a sua própria lógica local, de acordo com o historiador inglês, significa o mesmo que congelar ou até mesmo extirpar o dinamismo que dá vida à cidade, retirando dela seu motor para a criação da vida, mascarando seu vir-a-ser, seu viver.
A cidade depois do Moderno não é uma repetição do Moderno, mas uma evolução possível a partir de suas excrescências, de suas margens e detritos, atravessando a máscara do passado colocada por Hobsbawn. Uma evolução que é lenta pois se dá nas rotinas diárias, nas pequenas narrativas, de diferentes tamanhos que vão desde a feiras de artesanato a capitais africanas baseadas quase totalmente na informalidade como Lagos, na Nigéria, vividos longe dos discursos oficiais ou das grandes narrativas históricas. A história da cidade é produzida na medida em que evolui rumo ao desconhecido, sob as ruínas de um passado que se torna incondizente com o cotidiano vivido e capitalizado na cidade, ou como Hobsbawn afirma que “quando a mudança social acelera ou transforma a sociedade para além de um certo ponto, o passado cessa de ser um padrão do presente”
[2], e caminha “[...]para um processo de tornar-se presente”[3].

Dessa maneira, entre o passado como autoridade e como parte de um processo de presentificação, encruzilhadas que jogam luz sobre a questão envolvendo a cidade e seu uso no cotidiano se colocam à frente. O uso do espaço no cotidiano produz marcas, vestígios de um gasto temporal nos edifícios, nas ruas. Se tais marcas do uso são a possibilidade de atravessamento da máscara do passado, fazendo-o tornar-se presente, então porque retirar tal dimensão vivida, limpando, revitalizando ou restaurando pinturas originais e retirando a ação do tempo de sua tessitura? Não seriam tais marcas medidas das ações que dizem respeito ao que deve ser motor para a inovação cultural – uma cultura baseada no passado e não estacionada nele? Não seria o uso o apontamento para uma outra possibilidade futura? Mais incisivamente: a história não seria espacialmente além de um produto material[izado] também um processo cultural que é engenhado pelo passar do tempo na matéria pela ação humana?
A partir dessas questões, o lugar ocupado pela cidade depois do moderno só pode ser problematizado se colocado em questão sua imanente existência como campo relacional que contém matéria e homem agindo sobre o espaço até a completa transformação física do último no cotidiano. Assim, a cidade é território a ser construído sempre provisória e permanentemente consciente de seu próprio devir de acabamento, a fim de dar lugar a outras estruturas e modos de viver no futuro. Sendo assim, a potência histórico-cultural transformadora da cidade reside na sua própria possibilidade de destruição pelo e no cotidiano.
A história sempre aponta para o fim de algo pela sua transformação, e não para a preservação imutável desse mesmo algo: sejam estruturas sócio-econômicas, sejam espaços construídos e vividos. A história aponta para o futuro e não para o passado, de onde se move pelo já acabado.
Cidade, palco e mecanismo que engenha relações entre pessoas, estruturas de poder e dispositivos tecnológicos tais como Internet ou automóveis é espaço de luta ou campo de batalha, como coloca Henri Lefebvre, no cotidiano. E é justamente esse movimento de luta, de ação, de acontecimento, que traz à luz um processo de envelhecimento, de marcação na matéria da cidade. O envelhecimento, tema recorrente que aparece mais instantaneamente nos nossos corpos como rugas na pele, ranhuras de uma hidratação que não se tem mais porque o corpo não produz mais água como antes quando se chega aos quarenta anos de idade, é algo a ser pensado agora para a arquitetura e cidade modernas. Deve-se aprender a envelhecer, tal como nos diz Hobsbawn em seu livro Sobre a História, num ensaio de vinte anos atrás. Caso contrário, revitalizar ou qualquer tipo de anúncio restaurador ou preservacionista não é nada senão trazer de volta uma materialidade desprovida de contexto histórico. Desse modo, se torna discurso político vazio e ferramenta ideológica de um modo de pensamento oficial atrelado ao poder sombreando histórias menores que passam ao longe ou marginalmente às grandes narrativas históricas e que são o locus de transformações culturais.

Apagando os rastros

No texto Experiência e Pobreza, o filósofo alemão Walter Benjamin aponta para o surgimento de uma cultura específica na Modernidade: a cultura do vidro, um novo “[...]ambiente que mudará completamente os homens”
[4].
Acusando o vidro de ser o inimigo do mistério, pois sua transparência não permite esconder nada, vai mais além ao chamá-lo de inimigo da propriedade. Não se pode “ter” ou apropriar-se do vidro porque qualquer marca que se possa fazer nesse material para demarcá-lo como “seu” tende a não se manter. O vidro é “tão duro e tão liso, que nada se fixa”, segundo o autor. A lisura do vidro faz escorrer qualquer marca de uso do mesmo.
Se “cada coisa que possuo se torna opaca para mim”, segundo André Gide citado por Benjamin, o vidro constrói uma experiência da assepsia, uma impossibilidade de afeto marcado sobre o objeto pois ele não pode tornar-se próprio e nem propriedade de alguém devido a sua transparência. O mesmo processo de envidraçamento, de inocuicidade se passa sobre o patrimônio construído, logo sobre a cidade, quando ela é considerada como objeto a ser mantido jovem eternamente e não como elemento que faz parte de um processo maior: de envelhecimento, de marcação, de possível acabamento, de construção de um futuro.
O patrimônio é alisado, através de sua consideração como objeto de restaurações e de renovações constantes, onde qualquer vestígio deixado em sua superfície, se não é parte da história oficial do próprio edifício descrito em livros, roteiros ou placas informativas postadas à frente do próprio edifício para explicá-lo, deve ser retirada e limpa, pois a sujeira não é algo da ordem do novo. Tal limpeza chama um paradoxo: retira do edifício qualquer possibilidade de dizer por si mesmo, sem qualquer tipo de ajuda didático-informativa, sobre seu tempo de vida. Tal como uma plástica que retira rugas, marcas da ação do tempo, é retirado do edifício sua própria razão de existir pois a informação contida nele, escondida ou retirada através de processos de raspagem e recuperação de uma pintura original, podem ser obtidas em outros lugares tais como diagnósticos ou livros didáticos. O que por sua vez é falacioso, já que a história dos livros e diagnósticos são uma história, e não toda a história.
Se nada pode aderir a tais arquiteturas pois os rastros humanos são constantemente apagados, ela não se torna própria, nem apropriada, por ninguém.

Não tens nada a fazer aqui

Qual a possibilidade de desempenho de algum papel vital e de vitalização por aquele que vai visitar ou até mesmo viver na cidade que não pode ser tocada, que é transparente, limpa de qualquer sinal de sujeira, de uso, de apropriação?
No mesmo texto Experiência e Pobreza, Benjamin discute o aconchego paradoxal irradiado pelo quarto burguês do século XIX. Cheio de bibelôs sobre as prateleiras, guarda-fogo diante da lareira e cortinas transparentes, todos elementos retirados das últimas tendências da moda, “[...] o interior obriga o habitante a adquirir o máximo possível de hábitos, que se ajustam melhor a esse interior que a ele próprio”
[5].
Todo o aconchego construído no interior burguês nada é senão cópia de um padrão adquirido sendo perpetuado pelos hábitos da classe. Transpondo para hoje, toda a interioridade e domesticidade construída em apartamentos de dois, três ou quatro quartos, assim como em cidades ‘históricas’, é dada por revistas de moda e outros dispositivos produtores de um consenso chamado “estilo de vida” - vida. Não há nada a se fazer nesse espaço pois sua dimensão vivida já foi cooptada por todos os instrumentos construtores de uma cultura de massa para a massa, não importa qual seja, onde esteja. A cidade torna-se um interior burguês para todas as classes.

Uma impossibilidade maior abre-se aqui: a de contar uma história, a de viver uma história cujo papel do usuário é vital pois é tal participação vitalizadora que dá vida à mesma. Segundo as palavras de Jeanne Marie Gagnebin sobre os conceitos de experiência e história de Walter Benjamin, “a arte de contar histórias torna-se cada vez mais rara porque ela parte fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno, cujas condições de realização já não existem nas sociedades capitalistas modernas”
[6]. As condições, segundo ela, perdidas, são: a igual temporalidade entre quem ouve e quem narra; a artesanalidade da atividade produtiva, significando um conhecimento global do fazer articulado entre o gesto e a palavra; e a experiência fundada na dimensão prática.
Tomando tais condições como contexto de realização de passagens de experiências entre gerações, faz-se um paralelo com a cidade e o patrimônio histórico construído. Se não se pode tocar o edifício pois ele deve conservar a novidade, e quando é tocado, o toque é apagado ou não adere à superfície pois essa é envidraçada pelos hábitos adquiridos massivamente; isso significa uma impossibilidade de se tocar, de se ter um conhecimento tátil e usual, e de se construir uma lentidão, ritmo de aprendizagem do viver dia a dia no patrimônio, na cidade. Assim, já não se pode experimentar ou viver de outras maneiras, mas apenas através de visualizações rotineiras desse mesmo artefato, seja ele o edifício ou a cidade. Contar uma história, dizer de um processo vivido é tarefa impossível pois nada se tem ou se pode fazer aqui, pois tudo já está dado, imutável e certo.
A história oficial torna-se o único discurso. A cidade torna-se assim um livro a ser lido, sem ser discutido, usado, ou interferido.

Tens tudo a fazer aqui

Se a forma arquitetônica e a cidade só existem como tais no momento em que são habitadas, e não habitações, fazendo um paralelo com a mudança paradigmática da noção de habitar [o mundo] para habitat [um espaço cuja função é morar] durante a Modernidade [segundo Lefebvre em O Direito a Cidade], é possível dizer que o patrimônio só pode ser considerado na sua dimensão cultural e histórica se vivido na rotina, habitado então. Isso significa dizer que ele não é, mas se constrói como tal, como espaço a habitar, a medida em que ele torna-se habitável. Por isso, a cidade só é base de compreensão do passado para a construção de um presente e futuro se ela puder ser usada até, potencialmente, seu acabamento. Isso depreende um movimento dos objetos para o processo de produção dos mesmos, de apropriação, de afetação. Nesse caso, quanto mais deteriorado um edifício determinado por um uso contínuo ao longo da história de sua existência, maior foi ou ainda é sua possibilidade de produzir vida a partir de suas paredes quebradas, tijolos amarelados, vidros sujos, telhados sem telhas. Ele existe como parte da história, mas não é modelo de uma. Ele é o que for deixado para trás e o que pode ainda ser objeto de marcas porque produz vida.
Desloca-se aqui a cidade como objeto a ser compreendido como artefato histórico para uma concepção da mesma baseada em uma vivência, uma vida. Assim, a cidade depois do Moderno só pode ocupar um lugar onde seja colocado em questão o território urbano como espaço de luta pela vida através de sua própria vivência no cotidiano, esse último espaço vivido dos anúncios publicitários, das favelas, das ruas e vias de trânsito rápido, dos shoppng centers.


[1] CHOAY, F. Alegoria do Patrimônio. p.191.
[2] HOBSBAWN, E. Sobre a História. p.25.
[3] Ibid Idem. p.30
[4] BENJAMIN, W. Magia e Técnica. p.118.
[5] Ibid Idem. p.118.
[6] Ibid Idem. p.10

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